Cada um de nós tem a sua própria visão sobre os problemas da vida. Muitas vezes, um problema para uma pessoa é na verdade a solução para outra. Por exemplo, alguns encaram a aposentadoria como um problema sério. Eles pensam que com a aposentadoria ficarão improdutivos, isolados em casa. E de fato, eles podem até ficar deprimidos. Já outros pensam radicamento o oposto sobre a aposentadoria. Estes enxergam o tempo livre como divertido e cheio de possibilidades. Tudo depende da interpretação de cada um.
Com a insônia é a mesma coisa. Para uns, dormir 7 horas por dia está ótimo. Eles pensam que não há porque desperdiçar tempo na cama. Já para outros, dormir 7 horas é muito pouco. Eles pensam que precisam dormir muito mais para se sentirem bem. Ou seja, ter insônia para uns é bem diferente do que ter insônia para outros. Diante dessa diversidade, como a Ciência define Insônia?
Uma das tarefas mais fundamentais da Ciência é tentar ver a realidade como ela é. Todos nós distorcemos os fatos o tempo todo. Enxergamos sombras onde não há nada, ouvimos frases não ditas, acreditamos em histórias sem comprovação. Isso é normal. Faz parte da natureza humana. No entanto, a Ciência luta para chegar à essência dos fatos e das coisas. No tocante à insônia, a Ciência também batalhou para chegar à essência. Quando dormir mal é apenas passageiro? Qual é a quantidade de horas necessária para se dormir bem?Quando dormir mal se torna um Transtorno? A Ciência nos explica.
Através de diversos estudos, a Ciência chegou aos critérios diagnósticos da insônia. Veja os critérios mais usados pela Ciência para se definir Transtorno de Insônia:
Muito complicado? Vamos passo a passo para entender corretamente.
Explicações Sobre Os Critérios de Insônia
1. Insatisfação Com O Sono
O critério principal para se ter Insônia é justamente a dificuldade em dormir. Na verdade, não é bem a dificuldade em dormir, não é bem a falta de sono. O mais importante aqui é a queixa subjetiva de insatisfação com o sono. Sentir o desconforto de dormir mal é mais relevante do que realmente dormir menos. Isso porque algumas pessoas claramente dormem mal e não se queixam. Existem indivíduos que dormem pouco várias vezes por semana, mas não se importam. Se eles não tiverem prejuízos associados a esse comportamento de dormir mal, eles não vão se queixar. E sem o incômodo subjetivo, eles não terão o diagnóstico de insônia.
No entanto, o mais comum é o oposto. Pessoas dormem o suficiente, mas sentem que não dormiram bem. Acordam por um breve momento durante a noite, e pensam que ficaram acordadas por horas. Elas e se queixam, e se queixam, e se queixam. Reclamam de nunca terem dormido bem na vida. Então, a famosa profecia auto-realizável se realiza. De tanto prever chuva, uma hora o profeta acerta. A sensação de dormir mal gera pensamentos sabotadores que realmente causam insônia. Os pensamentos ruins pipocam o tempo todo:
-Sempre dormi mal… não tem jeito mesmo… Preciso dormir bem!
Tanto a mente é tão bombardeada por essas frases, que o corpo acaba desenvolvendo a insônia. De fato, o corpo se desperta no meio da noite. O coração aumenta o ritmo, a respiração acelera, os músculos se contraem, olhos se abrem: o indivíduo acorda. É o chamado Reflexo Condicionado. O organismo se acostuma a acordar no meio da noite. Ou então se acostuma a não se deixar dormir.
Em outros posts eu discuto o conceito de Reflexo Condicionado com mais detalhes. Esse é um dos conceitos mais importantes para se entender o Transtorno de Insônia. Por agora, vamos voltar aos critérios de insônia.
No Transtorno de Insônia, a insatisfação pode ser dividida em:
. Queixas com a quantidade de sono
. Queixas com a qualidade de sono
Cada pessoa deseja dormir uma quantidade, uma duração específica de tempo. Uns acreditam na referência ultrapassada de que se tem de dormir 8 horas por dia. Outros querem dormir menos de 7 horas por noite e acreditam que se sentem bem assim. Até aí, tudo bem. Se não houver queixa subjetiva de insônia, não há razão para se preocupar. O problema ocorre quando a quantidade desejada de sono não bate com o tempo em que de fato a pessoa fica dormindo. No caso de insônia, a pessoa acredita que necessita dormir muito mais do que ela realmente precisa. Esse descompasso gera preocupações e comportamentos que iniciam ou mantem a insônia.
Em outros posts, falamos brevemente nos Comportamentos Perpetuadores da Insônia.
Agora, vejamos as queixas em relação à qualidade do sono. No Transtorno de Insônia ocorre de o indivíduo não atingir as fases profundas do sono. Por diversos mecanismos, o sono fica superficial causando muitos prejuízos. Todavia, isso não é o que mais comumente ocorre. O mais comum é a pessoa ter uma qualidade de sono satisfatória, mas não saber. Ela dorme bem, atinge o sono profundo, e até sonha, mas não percebe que isso ocorreu. Ela deita, fecha os olhos, e passa a noite toda acreditando que ficou quase todo o tempo acordada. Ela pensa que somente teve alguns poucos lapsos de adormecimento. No entanto, se estudarmos essa mesma pessoa em um laboratório, se colocarmos nela aparelhos que medem com precisão a qualidade do sono, concluímos que essa pessoa dorme bem. É o que é chamado de Insônia Subjetiva. A pessoa percebe que dorme mal, quando de fato ela dorme razoavelmente bem.
2. Tipos de Insônia
Os autores dos critérios para a Insônia no DSM-5, ainda que sem essa pretensão, criaram 3 tipos de Insônia. São eles:
. Insônia Inicial
. Insônia de Manutenção
. Insônia Terminal
Na verdade, essa classificação é de uso corrente no linguajar médico, apesar de inúmeras críticas. Isso porque o Transtorno de Insônia não é estático. Um paciente com dificuldades iniciais para dormir pode começar a acordar antes do horário. Ou um paciente que anteriormente tinha apenas dificuldade para manter o sono pode evoluir com dificuldade para iniciar o sono. Não obstante, essa divisão apresenta a grande vantagem de ajudar na comunicação entre profissionais.
Na Insônia Inicial a pessoa se deita para dormir e sono simplesmente não vem. Ela tenta de tudo para chamar o sono. Tenta ficar imóvel, tenta se cobrir com lençol, tenta se descobrir, tenta virar para um lado ou para o outro. O sono simplesmente não vem. Ela passa longas e excruciantes horas antes de começar a dormir de fato.
Um conceito importante a se aprender aqui é o de Latência do Sono. A Latência do Sono é o tempo entre se deitar para dormir e dormir de fato. Ou seja, é o tempo em que se fica na cama deitado, pronto para dormir, restando apenas esperar a inconsciência do sono. Com toda a variabilidade das pessoas, algumas dormem rapidamente, outras levam um tempo maior. Até aí, tudo bem. No entanto, é nos extremos que está o transtorno. Tanto deitar e ficar horas sem dormir, quanto deitar e dormir instantaneamente podem indicar problemas. Ou seja, tanto uma Latência do Sono curta quanto uma Latência do Sono longa podem sinalizar alterações da normalidade. Alguém pode perguntar:
– Mas, deitar e dormir num segundo não seria o ideal ?
Não necessariamente. Deitar e dormir instantaneamente pode indicar falta de sono. O organismo está tão carente de dormir, que a pessoa mal fecha os olhos e já apaga. Isso pode significar Restrição de Sono causada por algum motivo. Ou a rotina está pesada demais e a pessoa não está reservando tempo suficiente para dormir, ou a qualidade do sono não está boa por alguma razão. O mais comum, o que seria mais normal é haver uma Latência de Sono que dure vários minutos. Portanto, Latências de Sono muito curtas não são normais e devem ser investigadas.
Por isso precisamos tem em mente que deitar e dormir instantaneamente não é normal. Precisamos ter pleno conhecimento de que uma Latência de Sono deve existir. Saber que necessariamente vamos passar algum tempo de olhos fechados sem dormir é um consolo. Isso ajuda na medida que tranquiliza pensamentos alarmistas de que não conseguiremos dormir.
Um interessante comentário é que nunca sabemos com exatidão a duração da nossa Latência de Sono. Por exemplo, ao fazer um Diário do Sono, devemos preencher o tempo aproximado entre o apagar as luzes para dormir e o dormir de fato. Se tentarmos capturar uma duração mais precisa, ficaremos mais vigilantes e demoraremos mais a dormir. Com isso a própria medição da Latência de Sono fica prejudicada. O início do sono normal é de tal forma gradual que não há como definir um momento exato que ele começa.
O outro tipo de insônia é a Insônia de Manutenção. Aqui a pessoa consegue deitar e iniciar o sono normalmente. Ela não apresenta dificuldades para começar a dormir. No entanto, no meio da noite ela se desperta. Sua mente fica clara, e ela só pensa preocupações. Ela percebe a cama como incômoda e a busca por posições confortáveis é incessante. A pessoa só volta a dormir horas depois, muitas vezes já com os primeiros raios de sol.
O terceiro tipo de insônia é a Insônia Terminal. Neste tipo de insônia, o sono é abreviado por algumas horas, apesar da insatisfação com a quantidade de sono. O indivíduo poderia dormir mais, mas não consegue. E essa falta de horas dormindo no final da noite de sono causa prejuízos para o indivíduo.
3. Prejuízos Causados Pela Insônia
O Transtorno de Insônia claramente causa malefícios. Todos sabem que após uma noite mal dormida temos dificuldade de concentração, irritabilidade, cansaço, sonolência. Quem já não passou uma noite em claro e não percebeu em si mesmo esses prejuízos? Praticamente todos nós passamos por isso. A experiência de eventualmente dormir mal é universal. Já sentimos na pele esses sintomas.
Agora imagine dormir mal 3, 4, 5 vezes por semana. Imagine a irritabilidade, o cansaço e a falta de concentração de quem padece do Transtorno de Insônia. Pense na morosidade de realizar tarefas com a concentração cronicamente afetada. Pense na dificuldade de relacionamento surgida quando o menor comentário causa uma agressividade insuportável. Pense no corpo só querendo cama, sem energia alguma, tamanho o cansaço acumulado. É evidente que o trabalho, os relacionamentos e a saúde física ficam afetadas. Os prejuízos causados pelo Transtorno de Insônia são enormes.
A presença de prejuízos causados pela Insônia são inquestionáveis. No entanto, os critérios servem tanto para dizer quem tem o transtorno de Insônia quanto quem não tem. Se uma pessoa acredita que dorme mal, mas não possui nenhum prejuízo no cotidiano, ela não tem o diagnóstico de insônia. Se a pessoa semanalmente perde uma ou duas noites de sono, mas continua trabalhando normalmente, tendo relacionamentos gratificantes, produzindo e crescendo, não há como dizer que a falta de sono causa malefícios. E sem malefícios, sem prejuízos, não há Insônia.
4. Frequência e Duração do Dormir Mal
Vamos analisar agora os próximos dois critérios do DSM-5. Eles se referem à frequência e a duração do Dormir mal. De acordo com eles, para ser Transtorno de Insônia, o problema deve existir:
. Numa frequência mínima de 3 vezes por semana
. Por um período de tempo superior a 3 meses
Na prática, quem tem o Transtorno de Insônia preenche esses critérios com facilidade. Experimente fazer uma pergunta a algum conhecido que já se queixou de insônia. Pergunte há quanto tempo ele tem problemas para dormir. A grande chance é de ele responder assim:
-Tenho insônia há muito tempo… Sempre dormi mal… Acho que desde quando eu era criança…
Isso se deve a características do Transtorno. A Insônia é um transtorno intermitente e que ocorre às escuras. Quando digo às escuras, quero dizer de forma literal e também não literal. É lógico que a insônia literalmente acontece à noite. No entanto, ela ocorre também às escuras, porque o indivíduo acaba escondendo o problema. Geralmente, o insone enfrenta o tormento sozinho. Por vezes ele fica acordado na cama, no escuro, em silêncio, imóvel. Ele não quer incomodar ninguém, não quer acordar outras pessoas da casa. Mas no dia seguinte, quando ele tenta desabafar, não é devidamente compreendido.
-Isso não é nada… Amanhã você dormirá melhor.
As pessoas não dão o suporte adequado. Elas até oferecem sugestões e conselhos, mas no fundo acreditam que não é um problema sério. De tanto ser mal compreendido, o insone se tranca e não mais pede ajuda. Isso piora o problema.
O insone até tenta seguir os conselhos. Ele toma um chá calmante ou tenta fazer uma meditação da internet. Algumas vezes ajuda, mas o problema nunca termina de fato. É uma outra característica do problema. A insônia é intermitente. As noites de insônia são intercaladas com noites melhores. Veja na figura abaixo:
E entre noites ruins e noites boas, o tempo vai passando, vai passando. O indivíduo sempre fica na esperança de dormir bem. Sem perceber, ele passa anos dormindo mal. Assim, o critério de 3 meses é tão facilmente preenchido.
Vamos analisar agora o critério de “3 noites mal dormidas por semana”. Nas entrelinhas, esse critério mostra que passar noites em claro é extremamente frequente. Por que esse critério não foi “dormir mal 1 noite por semana”? Ou “dormir mal 2 noites por semana”? Ora, 2 noites num total de 7 noites é uma fatia considerável, não é? Apesar disso, a Ciência (através do DSM-5 ) demarcou 3 noites em 7 noites. Isso é praticamente a metade de todas as noites. Mas por quê? A resposta óbvia é que dormir mal é muito comum. Podemos considerar que acordar de noite algumas vezes na semana é uma variação da normalidade.
Ou seja, uma pessoa que dorme mal 2 vezes na semana é saudável. O organismo dessa pessoa naturalmente encontra maneiras de compensar essa menor privação de sono. Ela pode se sentir cansada no dia seguinte, pode perder um pouco de concentração. No entanto, essas deficiências são transitórias e não ocasionam prejuízos importantes. Após algumas noites sem dormir direito, o corpo reencontra a homeostase naturalmente. O conceito de homeostase é interessante e nos ajuda a compreender melhor o dormir. Vamos ver a seguir.
A homeostase é o equilíbrio do organismo. O corpo busca a homeostase ou equilíbrio o tempo todo. Quando estamos com necessidade de alimentos, vem a fome, para comermos e o corpo voltar ao equilíbrio. Quando estamos com sede, o corpo “cria” a sede, para bebermos e a homeostase se restabelecer. Da mesma forma acontece com o sono. As noites mal dormidas acontecem inevitavelmente, mas o organismo compensa nas noites seguintes. É como se fosse um boneco João-Bobo ou João-Teimoso. Veja a imagem animada abaixo:
Uma noite mal dormida causa perda do equilíbrio. O corpo fica cansado, a mente fica desatenta, as emoções podem ficar à flor da pele. Como o organismo sai desse desequilíbrio? Logicamente, o organismo vai querer dormir durante mais tempo na noite seguinte. Ou então o sono será mais profundo. Assim, haverá a restituição da homeostase.
5. A Insônia Não Seria Causada Por Outros Problemas
Os últimos itens do DSM-5 para diagnosticar a insônia são critérios que excluem outras causas do dormir mal. Para se chamar de Transtorno de Insônia, a Insônia deve estar presente de forma pura, sem outros problemas que poderiam ser a razão de se estar dormindo mal. Isso é muito importante, pois o tratamento para o sono varia de acordo com a condição causadora.
Portanto, para se dizer que alguém tem o Transtorno de Insônia, devemos ter certeza de que não há outro problema de saúde causando o problema do sono. Veja na lista abaixo essas condições que atrapalham o sono:
. Apneia do sono
. Parassonias
. Pernas Inquietas
. Transtornos de Fase do Sono
. Uso de Medicamentos
. Uso de drogas Ilícitas
. Outros Transtornos Mentais como Psicose, Mania ou Depressão
. Dor Crônica
. Outros Problemas Médicos
Esses problemas de saúde devem ser identificados e tratados adequadamente. Não se pode iniciar um tratamento para a Insônia sem a pesquisa dessas condições. Isso porque essas condições atrapalhariam os resultados do tratamento.
Vamos ver um caso clínico fictício. Imagine uma pessoa com grande dificuldade para dormir. Ela inicia um tratamento para o Transtorno de Insônia. O tratamento avança, mas a pessoa não melhora nada. Ela fica desapontada. Ela teve esperança, mas foi em vão. No entanto, quando se revisa toda a história dela, descobre-se que na verdade ela tinha Apneia Do Sono, e não Transtorno de Insônia. O tratamento adequado da Apneia do Sono leva à resolução do problema.
Conclusão
Entender como a Ciência define a Insônia nos ajuda a enfrentar as nossas noites mal dormidas. Saber o que é insônia é o primeiro passo para combatê-la.
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Referência Bibliográfica
1- American Psychiatry Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental disorders – DSM-5. 5th.ed. Washington: American Psychiatric Association, 2013.